Uma das coisas legais nesse universo da perfumaria é que impera uma certa generosidade entre as pessoas. A Mônica Rossetto topou dar essa entrevista e ficamos umas semanas tentando acertar a data. Quando aconteceu, por telefone, logo no fim ela me convidou para participar da primeira aula da pós-graduação em Cultura do Perfume, na Faculdade Santa Marcelina, que deu origem a este texto sobre matérias primas de origem animal.
Ela é perfumista sênior com 25 anos de carreira, com passagens pelas gigantes Givaudan e Symrise, casas que formulam fragrâncias para outros gigantes como Natura, Boticário e Unilever. Sua história começa com a graduação em Farmácia e Bioquímica pela USP, em seguida entra na Dragoco, que se tornaria Symrise no futuro. Lá foi assistente de um mestre perfumista e assim estabeleceu sua memória olfativa, então se torna responsável pelo controle de qualidade de matérias primas. Nessa entrevista ela conta sobre a rotina do perfumista, aponta alguns caminhos para a criatividade no futuro e o estágio atual da perfumaria: “nesse momento existe um exagero, tudo é perfumado, a loja é perfumada, o elevador é perfumado.”
“O olfato se apura como instrumento. A gente estuda, pratica, vai acumulando memória e em algum momento a coisa faz click e dá sentido”, conta a Mônica. Além dela, ilustram o texto três perfumistas contemporâneos.
Vamos começar olhando para a perfumaria hoje, em que momento a gente está?
Nesse momento existe um exagero, tudo é perfumado, a loja é perfumada, o elevador é perfumado. Esse bombardeio não é bom. É como poluição sonora, causa um mal-estar. Você acaba encontrando o perfume que gosta numa loja, o cheiro da fralda vai parar no elevador, acho que as coisas tem que ter contexto, ambientação.
Além disso os perfumes estão todos meio parecidos. Os custos são altíssimos para frasco, campanha, embalagem e ninguém quer correr riscos, então partem para um flanker, que são variações pequenas em torno de um perfume principal, e em geral não são bons. Falta criatividade, há um medo de arriscar.
Existe a questão da legislação [restritiva de uso de matérias primas], estamos num
mundo paranóico, com medo. Certas empresas impedem o uso de limoneno em uma linha de produtos. Isso é encontrado na casca de cítricos, se você descascar uma laranja vai entrar em contato com mais limoneno que se passar uma colônia inteira. Não faz sentido. E tem a questão da sustentabilidade, não há disponibilidade de matérias primas naturais para produzir absolutos, por exemplo.
Qual foi o trabalho mais interessante que você fez?
Foi um projeto para o sabonete LUX desenvolvendo produtos para a América Latina e Ásia, em que criei três perfumes: para um sabonete branco, um rosa e um chocolate. São culturas com muitas distinções entre si, a dieta altera o cheiro da pele, o tipo de água é diferente. E também o contexto de uso é diferente. Na Índia é muito comum tomar banho de caneca numa área comum, pode ser que a casa esteja está cheirando a especiarias, e as referências olfativas de limpeza são outras. Foi muito legal olhar para as culturas diferentes, me enriqueceu profissionalmente e como pessoa também.
Que características um grande perfume tem?
Que seja único, diferenciado, que se reconheça: esse é o cheiro de um produto. A fragrância traz ilusão, sensação, sonho, comunica algo, assim como a roupa de alguém. Se uso um desinfetante perfumado e um sem perfume, os dois banheiros estão limpos, mas o que comunica limpeza é o perfumado. Um xampu cuja função é hidratar o cabelo, qual a fragrância que comunica isso? Não é limão. A fragrância ideal é capaz de levar para a fantasia.
Agora tirando o perfumista do pedestal, como que é um dia de rotina nesse trabalho?
Temos vários projetos acontecendo ao mesmo tempo, cada um num estágio. Todo o trabalho é feito junto com o avaliador, que também é um “nariz” mas não é um nariz criador. Ele faz o link entre a criação e o cliente, entende de mercado e serve como olhar de fora.
Idealmente os ensaios em que estou trabalhando ficaram dois dias macerando, embora esse tempo nem sempre seja possível devido aos prazos. Eu chego, avalio o que fiz, depois crio mais alguns ensaios se for necessário. Daí checo se entrou algum projeto novo. Em algum momento eu cheiro matérias primas as cegas, organizadas por um assistente, para aguçar a memória. A gente trabalha com 1500 matérias, as vezes lembro o cheiro mas não lembro o nome, tenho que sair cheirando no estoque para encontrar. Também cheiro produtos de mercado para saber o que está acontecendo. As vezes faço o acompanhamento de processos de uso do produto.
Como que é um teste de processo de uso?
Num teste de xampu, por exemplo, cheiro o cabelo durante o uso, o cabelo molhado depois de lavar, o cabelo seco depois de uma hora, o cabelo seco depois de quatro horas, tudo para saber como o produto se comporta. As vezes também faço uma parte de relacionamento, vou até o cliente e preparo uma pequena aula de perfumaria.
Você tem umas matérias primas preferidas?
Gosto muito de especiarias. Entre os naturais gosto muito do óleo essencial de cardamomo e seu caráter fresco, elegante, e também do essencial de pimenta rosa. Entre os sintéticos gosto das damasconas, que tem caráter rosa, a folha e a flor da rosa, e também caráter frutado como damasco. Está presente no Trésor (Lancôme) e em Paris (Yves Saint-Laurent). Outro sintético que gosto muito é o Cashmeran, que é um acorde madeira aveludada, e também ambergris, muito usado em perfumes masculinos.
Existe um comentário circulando que um perfume deve ser agitado delicadamente antes de ser aplicado, porque a dissolução do perfume no álcool nunca é total. Isso garantiria uma distribuição igual dos componentes no volume. Você confirma?
Não, não procede. Se a solubilidade está comprometida o líquido vai ser turvo ou bifásico, ou seja, você pode ver que tem alguma coisa errada. A fragrância é um óleo, depois ela é misturada com água e álcool para dar as concentrações (eau de toilette, parfum, etc). Então é posta para macerar em baixa temperatura e o que não for solúvel vai precipitar. Se você usou um absoluto de jasmim ele pode ter alguma partícula cerosa, por exemplo. Depois isso é filtrado a baixa temperatura e recolhido. Então não faz sentido a afirmação.
Você acompanha essa cena de blogs e fóruns em que as pessoas discutem perfumaria? Qual sua opinião sobre o que é produzido ali?
Acho muito interessante a troca de impressões, o comentário que desenvolve o espirito crítico, o entendimento, a compreensão do que é a perfumaria. As pessoas adoram perfume mas falta vocabulário, saber verbalizar o que está percebendo. Quando isso acontece o consumidor passa a escolher o que gosta, não pelo frasco ou por quem faz a propaganda. É muito bem-vindo o comentário porque educa o consumidor.
E a criatividade na perfumaria no futuro, por que caminhos ela vai aparecer?
A criatividade vai acontecer por conta dessas normas de restrição de uso e da sustentabilidade. Ao lado disso a pesquisa científica vai desenvolvendo novas cores para a palheta do perfumista, como aconteceu com o calone [*] nos anos 90, que está no L’Eau D’Issey. O amadurecimento do consumidor abre a possibilidade de inovação, cada vez mais vai se criar fragrâncias diferentes para pessoas diferentes. Também cresce a perfumaria de nicho e as marcas locais quase num movimento contrário a globalização.
Que perfumista te inspira?
Thierry Bessard, hoje na Firmenich, que trabalha no Brasil há muito tempo. Jean-Claude Ellena com seus frescos e verdes, eu não gosto de florais densos, prefiro detalhes florais. Gostei muito dos perfumes de Issey Miyake como o L’Eau.
Obrigado, Mônica! Que perfume você está usando agora?
Como te falei, gosto de detalhes florais, como na linha Omnia, de Bulgari. Também usei bastante Cuba Jungle Tiger e Jungle Zebra.
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