Tem nome para tudo nesse mundo. Quem já cheirou jasmim, lírio, angélica, passou perto de um cavalo, estábulo ou galinheiro já sabe o que é que, por preguiça de tradução, se acostumou a chamar de animálico num perfume. Aquele pedacinho feroz do jasmim onde ele cheira a cocô de cavalo, do lírio já meio passado em que parece borracha, da angélica onde ela não tem nada de angelical. Além dos suspeitos habituais: matérias primas animais como castoreum, civet, musk (almíscar).
Cominho cheira a suor e aparece em toneladas em Cartier Déclaration. O óleo essencial de botão de cassis, a xixi de gato, e é fundamental para fazer o aspecto sulfuroso, granulado, de goiabas e mangas, como em Un Jardin sur Le Nil. Pegue o Guerlain Acqua Allegoria Pamplelune, centrado num acorde grapefruit, e veja se não parece um pouco com cheiro de suor.
São efeitos que emprestam qualidades desejadas num perfume: as vezes calor, sensualidade, uma impressão carnal ou de pele, algo de humano. Mesmo que presentes em quantidades que não serão notadas, atuam como modificador, num gesto que a perfumista Mônica Rossetto chama de “um sopro de vida.” Me lembrei dos ceramistas japoneses que ao fazer um copo perfeito demais produzem um pequeno erro, em referência a quem produziu e a quem usa, que tem ali um pouco de humanidade para se vincular.
Se por um lado é mais ou menos esperado que notas couro lembrem o animal de alguma forma, tem alguma coisa de surpreendente no jasmim dividir algumas moléculas odorantes com estrume de cavalo — uma possibilidade é que elas sirvam para atrair insetos polinizadores.
Daria para incluir toda uma linhagem francesa de perfumes — pense nos queijos de bolores variados e perfumes impublicáveis, embutidos de intestino de porco que tem cheiro de intestino de porco, o vinho feito de uvas fungadas, e todas as coisas para as quais os americanos ministrariam três ciclos de antibióticos. Na passagem por São Paulo, Jean-Claude Ellena explicou essa diferença de gosto em termos de formação religiosa, relacionando com alterações no desenvolvimento de perfumes.
Alguns perfumes emblemáticos, com notas animálicas muito evidentes: o jasmim denso, intoxicante, de Serge Lutens A la Nuit e de Cacharel Lou Lou, o guerreiro-sem-banho-e-seu-cavalo de Muscs Koublai Khan, também Lutens, o delicioso fundo almiscarado de Carnal Flower (Frédéric Malle) e de La Fille de Berlin, ou ainda a abertura brutal de Tubereuse Criminelle. O chypre antigão Paloma Picasso tem uma dose enorme de civet, que cheira a cocô azedo, assim como Shalimar e Jicky, ambos Guerlain. Num efeito menos pungente, mais redondo, Le Parfum de Thérèse tem um fundo animálico que lembra frutas a beira do apodrecimento.
Para saber mais sobre essas facetas, suas funções num perfume ou como os ingredientes animais cheiram em isolamento, leia esse artigo sobre matérias primas animais e o relato da passagem de Ellena por São Paulo. Lendo as resenhas linkadas no texto você tem uma impressão mais completa de como essas nuances animálicas atuam em cada perfume.
Foto: Lucian Freud e cavalo