A pandemia vista daqui

Na quinta, dia 12 de março de 2020, fui na zona cerealista com uma amiga. Ali é sempre cheio. No meio dos grãos e temperos a gente via algumas pessoas de máscara, e algumas vezes nos olhamos, aquele olhar cúmplice de amigo, perguntando sem palavras: — Quem está viajando, a gente ou eles? E você sabe a resposta. Tinha um curso de cafés para fazer no fim de semana, que cancelei, e já não saí mais de casa. 

Minha vizinha de porta aqui no prédio era uma senhora japonesa muito chic, que andava com passinhos muito curtos nos corredores, de salto mas sem produzir ruído, com pó de arroz no rosto e o cabelo com permanente, vestida como uma secretária de escritório de advocacia, o que ela era mesmo. Morava sozinha, nunca vi alguma visita, e o segredo para ativar meu bom mocismo é colocar um velho da minha frente. Num bilhete de uma página, me ofereci para fazer compras para ela, um acordo que durou coisa de um ano, período que vi a saúde dela desabar.

Pouco antes da pandemia ela sofreu uma queda no escritório (uma extensão elétrica no meio do caminho) sofreu uma lesão na cervical e passou conviver com uma tontura. Depois sofreu mais algumas quedas aqui no prédio: no banheiro, levantando da cama, pegando as compras no chão — eu parei de contar na quinta. Algumas na madrugada, quando ela acordava algum vizinho ao som de “socorro!”, num gemido fantasmagórico que jamais vou esquecer, que entrava em casa pelas frestas da porta.

Foi aparecendo uma sobrinha, a irmã, entrou uma vizinha no revezamento, de repente ela tinha uma cuidadora todo dia, eu também não aguentava mais e fui me afastando. Até o dia que ela sumiu, parece que se mudou para o interior com um parente, ninguém no prédio sabe direito. Achei bom, ela precisava de mais cuidado, mas fiquei meio sentido. Custava um aviso? Uma vez ela me chamou para conversar e mostrou que tinha guardado meu bilhete. Prefiro pensar que continua com ela.

Isolamento social sempre foi minha levada e eu performava bem o dia. Fui entender depois que o ritmo de atividade era sustentado por uma ansiedade que destruía meu sono. Por um período cheguei a dormir 10 horas durante a noite, mais 30 minutos no meio do dia, e permanecia exausto. De 2019 até 2022 tive dezenas de crises de herpes labial, mais de uma por mês, às vezes semanais, com feridas infeccionadas e resistentes à Aciclovir. Nas piores, tinha vertigem e ficava de cama.

Fui ao psiquiatra depois que o relatório de uma polissonografia constatou que meu sono era ótimo. Ri do médico. Tomei Donaren, Pregabalina, Fluvoxamina e mais algum que esqueci. Foi um período de 10 meses de vôo de galinha com meu humor, um agora vai que não sai do lugar. A melhora no sono e na ansiedade foi pequena e não justificava os efeitos colaterais: sempre um na digestão, fora a libido que sumiu, em amplo sentido, desde o primeiro comprimido. Tomei antiviral diário por mais de um ano. Em um momento decidi não falar sobre a última crise de herpes, o último médico, o resultado do exame. Já não aguentava viver o assunto, quanto mais falar só dele. 

Ao longo desses 10 meses os episódios de herpes ficaram mais espaçados. Um período que coincidiu com mais atividade fora de casa, especialmente pedalar e malhar, e resolvi creditar a melhora às atividades. Junto com o médico, parei com o ansiolítico, ficou só a melatonina. E me tornei quem eu mais temia. 

Vou na academia 4 vezes por semana, tomo proteína e creatina, sigo influencers maromba, e sei introduzir esse assunto na conversa de mais jeitos que gostaria de admitir. Não tenho idéia do que seja uma boa noite de sono. Tenho todas as intolerâncias alimentares que já ironizei. Se me convidou para rolês à noite e eu aceitei, saiba que foi de boa-fé, mas vou furar. Por favor, continue me convidando, já entendi que tenho que recusar (é sério). O antiviral caríssimo que dá jeito na herpes virou gasto fixo. 

Já achei que teria uma, duas crises por ano, mas no último mês foram três. Me esforço para não pensar como vai ser minha saúde daqui em diante, que minha imaginação é catastrófica. Me recuso a viver uma vida de monge. Pedalo 100km numa semana boa. Eventualmente acordo às 5:30 da manhã para pedalar com os amigos. Me sinto num equilíbrio mais precário que antes, mas não é legal viver? Se me perguntar se estou bem, a resposta vai depender do dia.