A garota que servia de assistente veio do fundo da sala com o braço esticado, uma lata fechada na mão, virando o rosto para o outro lado com nojo. Abri. Era uma bolota com um pouco de pelo, alguma coisa parecida com uma garra e outros pedaços não identificados. Cheirava como queijo muito antigo e um grande grupo que só consigo nomear como “animal”, incluindo aí dejetos e carne maturada. Era a glândula do cervo almiscareiro, dela se faz uma tintura de uso muito antigo na perfumaria, conhecido pelas características que aporta num perfume: densidade, volume, riqueza, duração e sensualidade.
O lugar onde isso aconteceu é a Osmothèque, que é um conservatório de perfumes. No fim do ano passado fui assistir a um dos encontros que acontece na sede, em Versalhes, onde divide o espaço com a ISIPCA, a famosa escola de perfumaria.
O fato do almíscar de origem animal não ser mais usado é um dos motivos da Osmothèque existir. Perfumes deixaram de ser produzidos, matérias primas são proibidas em criações comerciais por motivos ecológicos ou de saúde – o papel da Osmothèque é recriar o que foi perdido em sua formulação original, com os ingredientes originais, e abrigar perfumes contemporâneos, ou seja, aqueles que vão ser perdidos.
Só o fato de possuírem a fórmula já é fato para ser comemorado: não existe direito autoral em perfumaria, a fórmula é a garantia de “posse” da criação. A Osmothèque foi fundada nos anos 90 por Jean Kerléo, o homem responsável pela qualidade de Joy, de Jean Patou, e criador de vários perfumes para a marca. Atualmente o museu abriga mais de 3000 perfumes desde o fim do século XIX. Todos são armazenados em temperatura controlada e a parte vazia do frasco é preenchida por um gás inerte, tudo para garantir a conservação.
Claro, a palestra conta com efeitos olfativos. A que assisti foi ministrada pelo perfumista Ange Zola, que apresentou uma panorâmica da história da perfumaria até os tempos recentes – Dior Poison e Opium apareceram em suas versões originais. Não fui apresentado ao que dizem ser o perfume mais bonito já feito, Iris Gris, mas um pediu atenção especial: Caron Tabac Blond.
Criado em 1919, Tabac Blond é a coisa mais macia, redonda e sedosa que meu nariz já conheceu. Tabaco e couro do jeito mais suave possível, cheios de leveza, não tem uma ponta, uma quina, nada, é uma grande cama macia para rolar pelado. Testei o Extrait da versão vendida atualmente. É um couro casca-grossa, bastante espesso, inteiramente agradável mas sem qualquer semelhança com o original. Desde então entrei na busca pelo tabaco perfeito, mais sussurrado na beira do ouvido que um cachimbo na sala, menos conhaque, menos mel, aquele que chegasse mais perto do Tabac Blond original. Até agora fiquei com Molinard Habanita: Tabac Blond é um Habanita menos o excesso. Se alguém tem uma pista, por favor, comente.
Na palestra estão disponíveis envelopes de papel que ajudam a conservar o perfume nas fitas por um tempo enorme, semanas depois ainda estavam perfeitas. Hoje, seis meses depois, ainda resta algo dessas coisas maravilhosas e proibidas. Também é possível fazer uma visita exclusiva e conhecer perfumes a sua escolha.
No meu espírito investigativo, fui dar uma volta nos corredores da escola e tinha uma exposição sobre Guerlain, completa com matérias primas para cheirar. A sala de recepção ainda expõe frascos antigos e matérias primas (sob vidro, não dá para sentir). E funciona como loja: eu saí com um livro sobre ervas e especiarias com comentários de perfumistas sobre suas qualidades (L’Herbier Parfumée), e um kit de 20 matérias primas. Surpreendentemente, a loja não vende online.
Em algum momento todo mundo que ama perfumes vai chegar em Paris. Aí recomendo muito dar uma esticada até a Osmothèque – e leve dinheiro porque a loja não aceita cartões.
Osmothèque
36 Rue du Parc de Clagny, Versalhes
http://www.osmotheque.fr/