J’Adore como desinfetante? Como os limpadores perfumados viraram coisa fina.

Minha amiga teve uma pequena crise existencial ao constatar que compraria papel higiênico para o resto da vida: se deu conta do abismo do cotidiano, a vertigem da rotina, a prosaica fisiologia tratorando até onde a vista alcança. Uma dona de casa que leu Borges demais?

Desde que fazer mercado online ficou viável, com o Rappi, resolvi o desinfetante (pelo mais barato) e só recompro. Tem algum tempo que passei numa loja física, na prateleira de coisas de limpar o piso, e tive a mesma sensação abissal da minha amiga. Só que por outro motivo.

Das possibilidades de pinho e lavanda passamos para Sensual, Romance, Seduction, Alegria, Marine, Folhas frescas, para não estender muito. Fragrâncias muito mais complexas e sofisticadas que antes, claramente inspiradas na perfumaria fina — a dos perfumes alcoólicos que a gente borrifa na pele. J’Adore, Be Delicious, Flowerbomb, está tudo ali, pelo menos em rascunho.

Como o perfumista consegue dizer “perfumaria fina” com um orçamento super limitado? Fui conversar com a Sandra Casagrande, perfumista da casa de fragrância Takasago, para entender o que está por trás disso. 

“A gente viu uma revolução na categoria. Agora a consumidora usa como finalizador da limpeza, para perfumar, e espirra na porta de casa para o perfume dar boas vindas”, ela disse. Fico impressionado com a técnica e a criatividade do perfumista, que consegue transpor algo que foi feito com bom orçamento para um contexto muito mais limitado. 

A perfumaria fina trabalha com orçamentos que vão de uns 60 a 100 dólares por quilo de fragrância sem diluir. “Para um limpador perfumado o melhor investimento é 20 ou 15 dólares”, conta Sandra. E qual é a mágica dessa passagem de categoria de produto? “Se o J’Adore é feito com 50 coisas, o que é o principal? Este cítrico, esta fruta, esta flor, este fundo. Com 5 matérias primas eu tenho que conseguir entender que aquilo é o perfume.” E viva o poder de síntese.

Não atrapalha que para perfume de piso a exigência de quem compra é menor que para perfume de pele. Ninguém vai sair com a fita perfumada da loja, avaliar ao longo do dia, conviver com o perfume.

Na hora de compor o perfumista capricha na explosão da fragrância porque é abrindo o frasco ali no mercado, em segundos, que o consumidor decide a compra. As notas de fundo também tem atenção. São elas que dão a permanência do perfume: a fragrância tem que durar 24 horas no piso. “Cheiro de limpo, de cândida, de cloro, hoje está restrito ao banheiro. A pessoa quer dizer que a casa está cheirosa. E o perfumista faz milagre com esse orçamento”, diz Sandra.

Foto de JESHOOTS.COM no Unsplash.