Quando o olfato era maior que a visão

As cruzadas trouxeram, na Idade Média, condimentos exóticos e perfumes do Oriente para a Europa, e a caixa de especiarias se tornou inevitável na cozinha medieval. O palácio de Henrique VIII tinha um cômodo dedicado ao assunto, uma spicery para armazenar e moer especiarias.

Na imagem: médico da peste em gravura do século XVII

Um ateniense rico poderia se perfumar de várias fragrâncias para sair de casa: manjerona nos cabelos, hortelã nos braços e tomilho no pescoço. Os romanos perfumavam a comida, seus lares e os animais domésticos. Incensos eram usados em rituais religiosos, ligando os humanos aos deuses.

Diferente de hoje, perfume era mais que um adereço, era uma característica da vida pública, enriquecendo a paisagem olfativa da cidade. Imagine Paris no século XVIII. Apinhada de cortiços com poucas janelas, sem sistema de água, de esgoto ou geladeira, os banhos inexistentes, as roupas não lavadas, os ratos — e o cheiro que isso tem.

Até o século XIX se imaginava que a transmissão de doenças acontecia pelo mal cheiro — os chamados médicos da peste usavam máscaras com um bico longo, onde ficava um material aromático. Águas de colônia era usadas pelas classes ricas para banhos improvisados, esfregando a pele, o que tinha sua parcela de efeito: o álcool funcionava como bactericida. As fragrâncias não eram somente um prazer sensorial mas uma necessidade, um modo de bloquear odores fétidos das cidades.

Será que uma certa platitude de cheiros na vida contemporânea explica as lojas perfumadas a exaustão nos shoppings, o fascínio por fragrâncias de ambiente e até por perfumes? No extremo chegamos nos dias de hoje: tomamos dois banhos por dia para tirar todo o cheiro que nos lembre do próprio corpo, que ele é vivo. E depois colocamos um perfume, às vezes o mesmo por grande parte da vida, numa relação de identidade.

Quando o olfato passou a ser secundário, dando lugar para uma cultura predominantemente visual? Nos próximos posts exploro passagens históricas que colocaram a visão no centro da cultura, deixando o olfato de lado e como retomá-lo.

  • Joao Pedro

    Uau, que texto! É sempre um prazer ler o que você escreve, Dênis, tudo tão lapidado, palavras que parecem ter sido escolhidas a dedo, nada em excesso, simples e direto. Só fico lembrando o quanto a literatura sobre perfumaria esbarra nesse impasse, quase aporético, de traduzir uma linguagem em outra

    • Obrigado, João! Sempre tentando ser conciso por aqui e não deixar nada de fora. Minha tendência é querer fazer um tratado.

  • Rafael Oxn

    Muito bom Denis! parabéns!

    só não seja tão “conciso” escreva! escreva muito. Te garanto que ler seus textos não são tarefas árduas, muito pelo contrario são um deleite !

  • Elisabete Rocha Pagani

    Incrível post!
    É muito apaixonante esse assunto, Dênis, e você o trata com muita reverência, como deve ser.
    Tenho uma curiosidade, no livro “O Perfume” se bem me lembro, tem uma menção a tapetes perfumados, você tem alguma confirmação disso?

    • Tapete perfumado é algo que nunca ouvi falar. Luva sim, porque o processo de tratamento do couro resultava em cheiros impublicáveis.

  • Bruno Nóbrega de Sousa

    Excelente pauta, Dênis.