Perfume e memória: para não dizer que não falei das tílias

Eu nunca tive uma experiência de primavera tão marcante. Estou em Berlim desde abril, quando cheguei ainda tinha uma camada de neve nos telhados, nas calçadas, e mesmo agora, que a rigor é pleno verão, só teve três semanas de calor — e espaçadas entre si por outras de frio. Talvez 2013 seja o ano sem verão na Europa?

A tília em flor. (Foto: Redteam)

A tília em flor. (Foto: Redteam)

Fui buscar uma memória de primavera e me ocorreram as paineiras, mais ou menos comuns em São Paulo, desbundantes em flores cor de rosa e chumaços de algodão de arrepiar qualquer alérgico. O Cemitério da Vila Mariana é cheio delas. Mas as paineiras floram no outono. Depois vieram as amoreiras, sei que tem algumas no canteiro central da Av. Rebouças (cuidado) e uma quase na frente da Casa das Rosas. Lembrei da pitangueira no fundo da casa em que cresci e da roseira no meio dela, tão embrenhada nos galhos a levantar suspeitas sobre a verdade da pitanga, produzindo cachos de rosas brancas sem cheiro. Mas se formos comparar por contraste a verdade é que não há contraste. O inverno paulistano é mais ou menos folhoso, toda estação é mais ou menos florida, a primavera se desenrola ao invés de rachar a terra, o que responde pela minha dificuldade em encontrar uma memória definitiva da estação. Depois de assistir a Pina Bausch e sua Sagração da Primavera, fui pesquisar sobre o tema e dizia o Stravinsky, compositor da peça, que ficava encantado com a brutalidade do início da primavera na Rússia. É isso.

Fecha na tília! No zoom ela até é simpática -- e cheia de pólen.

Fecha na tília! No zoom ela até é simpática — e cheia de pólen. (Foto Dinesh Valke)

Se fosse pensar uma memória para a primavera de Berlim a primeira resposta seria a tília. Não pelo tronco, categoria que o pau-ferro é campeão, nem pela flor miúda, sem muito atrativo visual, escondida na copa da árvore. Mas essa flor produz um cheiro sensacional, é como um pouco de jasmim com mel e um ângulo verde de folha amassada. As árvores são bem simbólicas da cidade, estão plantadas por toda a parte no lado oriental e dão nome para a avenida que leva ao Portão de Brandenburgo: Sob as Tílias ou Unter den Linden. Algumas ruas são particularmente felizes no conjunto floração, é só virar uma esquina e ficar imerso nesse cheiro maravilhoso.

Semana passada encontrei num mercado um pacote de chá de tília, apenas as flores e uma espécie de folha verde que nasce junto com elas. Tudo inteiro e seco, quase sem alteração (o site é http://teanova.de). A infusão é muito aromática, também combinação do floral e do aspecto verde. Outra marca da sazonalidade: se não forem colhidas a tempo, só ano que vem. Faz mais de um mês que as flores apareceram e já são bem poucas as que exalam. Enquanto isso apareceu nas ruas um outro cheiro mais doce, espesso e narcótico, que lembra a dama da noite. Serão outras ou as mesmas transformadas?

As flores secas do chá da Teanova

As flores secas do chá da Teanova

A tília parece ter propensão a se fixar na memória, ela faz parte da lembrança tão inevitável quanto clichê quando se fala de olfato e memória: Proust e sua madeleine. O bolinho é aromatizado com água de flor de laranjeira, aumentando a exuberância olfativa. Voltando para casa de um dia frio, o narrador aceita uma xícara de chá e uma “petit madeleine” — na primeira mordida

Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seu desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas ultrapassava-o infinitamente, não deveria ser da mesma espécie. De onde vinha?

Não sem esforço é que consegue localizar a origem da memória:

Aquele gosto era o do pedacinho de madaleine que minha tia Léonie me dava aos domingos de manhã em Combray (porque nesse dia eu não saía antes da hora da missa), quando ia dar-lhe bom dia no seu quarto, depois de mergulhá-lo em uma infusão de chá ou de tília.

E você? Na sua experiência qual é o evento que marca o início da primavera? Qual sua memória mais forte dessa estação? Alguma vez você foi jogado numa memória como o narrador do livro? Qual sua madeleine de Proust? Sua contribuição é bem-vinda nos comentários.

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  • lu

    O aroma que me transporta para a infância e para uma sensação deliciosa de calma e segurança é o do chá de erva cidreira que a minha avó tomava todas as noites.

    • Dênis Pagani

      Lu, memória de infância com vó não tem igual. a minha também passa por chá de cidreira e camomila, comendo pão fresco com mel.

  • Bete

    Que imagens bonitas, e que cheiros!
    Primavera em Berlim, uma experiencia para todos os sentidos
    Minha recordacao de primavera eh do Desfile da Primavera que preparavam as escolas estaduais e apresentavamos em avenidas largas de uma Sao Paulo nao tao ensandecida. As flores estávam ñas nossas roupas e ñas peneiras que carregavamos.
    A citacao do Proust eh óptima.
    O toque de laranja da madeleine eh o mesmo, parece, do pan de muerto que produzem no México, para o Día de los Muertos. Aromático e delicioso.
    Gostei da sua incursión pelas flores.

    • Dênis Pagani

      Bete, que simpático esse desfile da primavera, direto de um tempo em que a cidade era mais romântica, que cabia uma comemoração mais “alegria de viver”. O Proust, relutei em citar, o dia em que se conseguir falar de perfume e memória e não citar Proust o mundo terá dado uma volta.

      • Guto

        Então que bom que esse dia não chegou, a citação de Proust foi mais que perfeita, Dênis. Belo post. Delicioso, eu diria, pois madeleine é um dos doces de que mais gosto…

        • Dênis Pagani

          É minha velha vontade de fugir de todo clichê, Guto, mas certos clichês precisam ser respeitados, não é?