— Fazia mais de dez anos que não vinha nesse shopping. Tudo agora tem perfume, os corredores tem perfume! Ana foi me contando sua surpresa enquanto terminava um cigarro. — Eu fumo há mais de 50 anos e meu olfato e paladar são excelentes. Mais alguns tragos para terminar e fomos entrando em direção ao café. Ela me contou a história falando rápido, bastante, com os olhos vivos atrás do óculos vermelho. Nunca parei para pensar muito mas supunha que gravadores tivessem as mãos machucadas de buril e encardidas da tinta viscosa. As de Ana Dora são bonitas, com as unhas feitas sem esmalte. São dela as gravuras que ilustram o post.
Ela foi presenteada “em algum lugar dos anos 60” por um parente francês que trabalhava no pret-a-porter de Christian Dior e veio visitar a família. Ana Dora relembra: “ele trouxe um conjunto de saia e casaco três quartos Lanvin, branco e bege, mais o perfume Eau Folle”. Em setembro de 1968, na ressaca do maio, Ana foi a Paris visitar parte da família. Aqui eu a interrompo: — Você se apaixonou por um primo francês? Uma amiga numa situação parecida, mais ou menos quinze anos depois, viveu isso, resolvi arriscar. — Sim! E ele não me deu a menor bola! — e riu. O Eau Folle foi acompanhando essa viagem e o retorno dela. — Eu não tenho alguns perfumes, eu tenho um, me visto todo dia com ele. Ana repunha o perfume em São Paulo, “tudo original, mas de contrabando”, até o dia em que foi descontinuado.
Numa outra viagem arrumou um substituto, Gió eau de parfum (Giorgio Armani). Esse foi criado em 1992 e arrastado pelo sucesso da versão Acqua de Gio, de 1995. Anos depois teve o mesmo destino: produção encerrada. No momento da escrita do artigo os oito últimos vidros na Amazon.com custavam entre 325 e 500 dólares, um exemplar de teste três quartos cheio, sem a caixa, oxidado pela exposição a luz, 170 dólares no Ebay. Foi assim que nos conhecemos, ela gritando socorro, procurando um outro perfume. Então me preparei como foi possível e partimos para a expedição.
Sobre o Eau Folle só consegui dados. O site Fragrantica é uma espécie de banco de dados que lista o perfume como sendo de predominância verde (como grama cortada), e cítrica, com tons menores de flores (em geral) e couro. Frescor verde e cítrico, aquela alegria, com um escuro do couro, uma cor das flores, meu radar apontou algumas coisas talvez não diretamente ligadas mas no que me pareceu o mesmo espírito — um passo do verão da colônia em direção ao outono do chypre, que daria um fundo escuro. Chanel Pour Monsieur se for uma coisa mais sóbria, Diorella com seu belo floreio, Eau Fraîche (ambos Dior), que é alegria numa garrafa, minha melhor aposta, bem cítrico, vibrante e com uma colher de chypre para dar profundidade.
Do Gió Ana ainda tem meio vidro que levou para testar. É uma angélica, a flor, sobre base amadeirada e âmbar, a flor grande e a base delicada, de um leve calor, só para colar na pele. Angélica em si é tão bela quanto brutal, passando do bonito o odor tem aspectos de plástico, borracha, terra, bem presente no odiado Poison, e também queijo — dos fedidos, estilo camembert. No Gió está editada na parte bonita. A impressão geral é madura e com um brilho de por do sol, com o ar um pouco mais frio, que Ana Dora definiu tão bem: fim de verão/começo de outono em Florença.
Já na porta da perfumaria me confessou. — O Eau Sauvage eu presenteava meus namorados, fico louca com esse perfume, me dava vontade de agarrar eles. Será que não colocam feromônios? Você já pesquisou isso? Anotei no caderno e entramos.
[a continuação deste post está aqui]
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