Mathilde Laurent, da Cartier — “Eu expresso beleza olfativa”

No blog do inglês Thomas Dunckley, o Candy Perfume Boy, tem uma pequena entrevista com Mathilde Laurent, perfumista exclusiva na Cartier. Sua visão sobre a regulação de matérias primas na indústria é refrescante, e vai na contramão do que costumam dizer os perfumistas. Ela também se opõe a idéia de que matérias primas naturais são melhores que sintéticas: “um perfume maravilhoso é feito pelo homem, não pela natureza.”

Para um pouco de informação biográfica, veja o perfil que fiz. Abaixo, alguns trechos selecionados.

 

Sobre regulação do uso de matérias primas

“É uma coisa boa. É preocupante para as pessoas pensar que a indústria não está sendo vigiada. Também é importante ter um ponto de vista toxicológico sobre o perfume. Frequentemente não é o perfumista que reformula. Quando você não tem um perfumista exclusivo, não sabe a fórmula. O fabricante reformula o produto sem comunicar o cliente, e o cliente não é capaz de avaliar ou sentir a diferença.

Eu cuido das alterações na Cartier. Tenho liberdade para dizer que não vamos substituir um ingrediente se não tem algum equivalente para isso. Também tenho liberdade para dizer que vamos esperar até que a IFRA [International Fragrance Association] proíba a matéria prima. Podemos esperar de um a dois anos. Quando a IFRA proíbe, temos dois anos para trabalhar no perfume.

Os perfumistas se apressam em remover matérias primas. É falso pensar que IFRA é igual a menos matérias primas, os perfumistas é que focam nisso.”

 

Sobre L’Heure Perdue, último perfume da coleção Les Heures du Parfum, e o uso de matérias primas naturais

“A coleção é baseada no trabalho de Marcel Proust. Minha intenção era trabalhar com baunilha — um grande tema da perfumaria. Cada hora [a coleção tem um perfume para cada hora] tem um grande tema da arte da perfumaria. Com L’Heure Perdue quis criar um perfume que não usasse naturais. É totalmente molecular or sintético.

Vanilina [sintético que cheira a baunilha] é interessante porque, desde sua descoberta no início do século XIX, ninguém mais usa baunilha natural. As pessoas tem que saber que o que os liga com a infância e a primeira memória de bolos, etc, foi baunilha sintética. Um perfume maravilhoso é feito pelo homem, não pela natureza.”

 

Sobre perfume ser uma arte

Para mim é uma arte. É um trabalho de arte e da mente. É intelectual. Existe por escrito antes de estar no frasco. É uma linguagem — um jeito de expressar beleza e de dizer alguma coisa. Considero como uma arte. Tento fazer como uma arte. Procuro beleza. Eu expresso beleza olfativa.

 

Não deixe de ler a entrevista completa no Candy Perfume Boy.

 

  • Daniel Arata

    Poxa Dênis. Que bacana essa entrevista. Eu até entendi o que ela quis dizer que um perfume maravilhoso é feito pelo homem, não pela natureza. Mas acho que o fato de trabalhar com matérias primas naturais tem mais a ver com a tal “beleza olfativa” da criação do que propriamente o uso de uma matéria prima sintética. (que hoje todo mundo usa).
    Claro que são ideias bem distintas. Mas vai do valor agregado além da criação intelectual, como ela mesmo cita na entrevista. Pelo menos assim penso eu. Rs.
    Obrigado por compartilhar! 😉

    • Mas o valor intelectual é o que distingue o perfume do cheiro das coisas da natureza. Não tem sentido colocar as coisas em oposição, preferir uma ou outra, entende? É como comparar cidade com floresta.

      Raridade ou beleza da matéria prima natural não garantem um bom perfume se a matéria prima não for bem usada — entra o valor intelectual de novo. A natureza já ganhou, a gente é produto dela. Mas a perfumaria é só nossa.

  • Olá Dênis, muito prazer em dialogar perfumês com vocês por aqui!
    Adoro o trabalho da Mathilde Laurent, principalmente Les Heures de Cartier. Ela sempre fala com muita transparência e propriedade. Porém não tem como concordar que a regulação no uso de certas matérias primas seja uma coisa boa para a perfumaria! Isso é um absurdo! Pura expeculação politico-econômica imposta pelas grandes casas de perfumaria para poderem colocar novas moléculas no mercado, aumentando assim seus lucros.
    Você já ouviu falar em alguém que tenha morrido por causa de um perfume?
    Porque não existe regulação na indústria agroalimentícia? Indústria essa que é muito maior e com mais riscos diretos à saúde, causando quase 40 milhões de mortes no mundo anualmente.
    Se houvesse regulação também para os alimentos, deveríamos usar luvas ao manipular uma fruta cítrica no supermercado, ao passo que uma essência cítrica num perfume, é 100 vezes menos perigoso do que esse contato físico com a fruta.
    Mas isso ocorre também com matérias sintéticas, como as que compõem a fórmula para reconstituir o cheiro do Lírio do Vale. Os perfumistas não conseguem mais trabalhar essa nota, e quando trabalham, não sai nada de interessante. Sem contar os estragos que isso acarretou em perfumes do patrimônio olfativo, como é o caso de Diorissimo, criado em 1956 pelo maior perfumista do século XX, Edmond Roudnitska.
    O assunto é muito delicado e ainda bem que hoje temos alguns perfumistas que reclama na mídia. Daria para imaginar restrições com essências de Rosa e Jasmim? Isso foi cogitado ha’ 4 anos atrás, e graças à alguns perfumistas como Thierry Wasser, da Guerlain, que escreveu uma carta aberta na mídia, isso foi protelado.

    Abraços!

    • Daniel, concordo com vc, especialmente no que diz respeito a patrimônio, mas não consigo deixar de achar fascinante a postura dela — batendo no peito e chamando a responsabilidade para o perfumista, que até aqui estava numa numa posição de vítima. Tendo a acreditar que é mais dessa forma, tomando pra si, que é possível se opor e alterar alguma coisa — não custa lembrar que a IFRA é da órgão da própria indústria, legislando sobre ela mesma.

      Sobre a retirada de restrições, teve um caso ligado a vanilina tbm, não teve? E não consta nenhum óbito de consumidores de Hypnotic Poison. Legislação e regulação inútil dá metástase.

      • Oi Dênis,
        A Mathilde é fascinante de qualquer jeito! Mas imagine essa situação no mundo das artes plásticas. Quadros sendo restaurados, e artistas tendo sua paleta de cores reduzida! “Você só pode usar 0,5% de azul no seu quadro”, já pensou? Para mim é a mesma coisa.
        Sim, a vanilina também estava na lista, acho que até antes da rosa e do jasmim.
        Pode até parecer absurdo né, o fato da própria indústria criar um orgão regulador. Mas tudo isso só tem uma finalidade, a econômica, como quase tudo hoje em dia. Infelizmente.
        Há quatro anos atrás, os laboratórios ainda aceitavam produzir o concentrado de um perfume “não IFRA”, sendo a responsabilidade da marca. Foi assim com vários perfumes da Frédérci Malle. Hoje em dia, não aceitam mais por causa da pressão e repressão da parte da IFRA.
        É Muito mais rentável produzir toneladas de Evernyl do que comprar o musgo de carvalho da ex-Iugoslávia ou Marrocos.
        Por isso a importância dos perfumes vintage, para se ter uma real dimensão da profundidade e complexidade de uma matéria prima natural.

  • Dênis, você viu que ela escreveu um livro? http://www.decitre.fr/livres/un-monde-d-odeurs-9782227488243.html

    • Ah! Eu tinha visto, mas esquecido, hahaha. Que demais. Vou comprar já, obrigado pelo lembrete! Vc já leu, Daniel?

      • Ainda não, acabei de descobrir! Vou comprar ja’!